O Cravo Incessante


domingo, 3 de março de 2013

A Origem das Espécies Eróticas


      Acontecimentos recentes despertaram em mim os desígnios existenciais da ironia presente na vida de todos os seres dispostos a amar. Este ensaio pode nada mais ser do que só mais um outro na vasta pilha de papéis tingidos por tinta e lágrimas dos amantes infelizes. Tomo o devido risco, no entanto, de buscar apresentar minha mais nova teoria. A fada verde sobre meu ombro me encorajou a fazê-lo, darei voz à pobrezinha. Prometemos um ao outro que, caso o texto termine por ser simplesmente ruim, temos suas companheiras para fazer ninho na tumba de meu peito ao deslizar goela abaixo.
      Consideremos por um instante uma gélida floresta, sufocada pela neve, respirando vida mamífera enquanto a vegetal luta desesperadamente. Uma lebre saltita sobre o tapete branco, esfarelando rastros a cada pegada, dando voltas pelas árvores enegrecidas. Ao longe, um lobo aguarda pacientemente, petrificando o olhar sobre tal criaturinha. As pernas de mola do animal alegre resolvem descansar um pouco, seus bigodes tomam o trabalho, em espasmos nervosos, de manter o movimento circulando. Silêncio absoluto. A enervante brisa sopra, uivando por aquele que não pode uivar por um intento maior.
      Uma faísca inicia a ignição dos músculos do predador, o fogo cresce dentro dele, ele atira o corpo por sobre a alva vítima. Os minúsculos olhos vermelhos perdem o brilho, o pelo encharcado pelo carmesim da vida respinga… Com a jugular rompida e a espinha destroçada, um colar de dentes pontiagudos ergue a lebre, e desaparece com ela pelas folhas. Nenhum grito foi ouvido e nenhum espectador testemunhou realmente a cena.
      No tribunal racional de nossas mentes, pergunto quem seria o culpado nessa pequena fábula. Esopo, talvez, culparia a inocência da lebre. Contaminada pela alegria, fez-se surda e cega ao mundo perigoso a seu redor, optando inconscientemente por ser uma vulnerável presa. Poe, deliciaria seu paladar comentando a beleza do lobo  que provoca a morte, certeza única da vida. Como mensageiro macabro, nada mais fez do que cumprir seu papel. Darwin, diria que a natureza tomou seu curso, seu processo natural, e que a ninguém cabe realmente contestar suas escolhas. A lebre morreu para que o lobo vivesse. O lobo em breve morrerá para que algo possa perpetuar seu reino de terror assassino. Seria Darwin, então, um bom amante?
      É um aparente salto incoerente perguntar tal coisa, sou ciente disso. O que busco, no entanto, é esclarecer o quanto a vida amorosa fracassada é similar à cena que descrevi. Certas vezes somos a lebre, a infeliz Eurídice, cegos por encantos de sereias que só nós podemos ouvir. Também somos capazes da frieza do lobo, cruel Tânatos, bebericando da garganta pulsante em prol do capricho maior da sede. Mas o Amor, jovem serelepe, é a Natureza. Creio nele não como um grande arquiteto de sonhos e planos trabalhosos, mas como Safo o fez, o “tecelão de mitos”. Suas tramas são inocentemente cerzidas a cada moral que devemos aprender. Os que aprendem, continuam vivos. Os que não conseguem ouvir, são largados à morte psíquica.
      Obviamente, alguns surdos sobrevivem, arrastando seus corpos feridos pela neve… Mas a surdez voluntária faz com que o inverno sopre suas almas ao Tártaro, ou simplesmente traga outro lobo para fazer-lhes companhia. E os lobos? Ora, os lobos são presas também, assim como as lebres podem ser predadoras. De forma alguma congelo os moldes e peço a cada um de vocês uma identificação de suas tendências passivas ou ativas com as personagens de meu texto. Se assim o fizeram até aqui, caminhamos de forma errada. Então, ordeno que parem e que iniciem novamente a leitura. Escorregamos diariamente por entre os dois papéis.
      O tempo fez com que nos acostumássemos com os arquétipos. A vida, creio eu, é inerente a eles, claro!, mas também é palpável. Lineu fez um maravilhoso trabalho de Medusa, petrificando cada ser e categorizando-os na eternidade. Involuntariamente repetimos seu trabalho, esquecendo da mutabilidade da vida e dos aspectos adaptáveis de sua fluidez. Os seres são capazes de adaptar comportamentos e tal característica engendra uma “polivalência” suficiente para romper os padrões científicos rotuladores. Aí reside o grande truque irônico do Amor: crueldade constante para os que insistem na imutabilidade, novos caminhos para os que aderem aos genes as mutações naturais.
      Não me tomem como positivo. Não. Apenas vejo um darwinismo emocional aplicável. Creio ser saudável minha tentativa. O que peço não é uma visão positiva, crente, resignada… Muito menos niilista. Faço presente os ofícios da Fortuna: nada cabe a nós dizer, os canais podem ser cavados por nós, mas a água há de jorrar por força própria. A água jorra adiante, para frente, sem julgamentos bons ou maus.
      Alguns poderão fazer inevitável comparação divina. Sinto ser de minha responsabilidade afirmar que não falo de Deus. Falo de uma progressão, de um devir, que se dá pelo pensamento humano. Não de forma sobrenatural e telecinética, mas de acordo com os princípios cartesianos. Se a Natureza se prende à morte para ensinar suas lições, devemos nos reter ao pensamento e reflexão para apreendê-las. O simples fato de pensarmos, de questionarmos, é uma segunda certeza neste plano emocional. Somos sapiens, correto? No plano maior do curso natural, portanto, é esperado de nós o papel reflexivo. E não tenhamos pena de nós mesmos se recusamos cumprir a tal obrigação.
      Aviso que a melancolia fará, sempre, parte da infelicidade de se pensar. Não removo esse mérito insano. Mas sua consequência é digna dos mais altos floreios poéticos: é a epifania. A epifania é irmã gêmea, dizigótica e útil, da eufemia resignada. Procurem por ela de agora em diante... No processo evolutivo do Amor, é um catalisador biológico bastante relevante.

Vitor da M. Vívolo. 03/03/13 às 20h57

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